segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Eloquência Singular. Fernando Sabino

Fiz meu exame de Admissão ao Ginásio no início de 1980.
 
 
 
Contava 11 anos de idade e aquela foi a última turma (na história da pequena Ouro Branco) a ter que se submeter ao exame para cursar o ginasial; tremia de nervoso, mas passei, para alívio meu e orgulho de meus pais.
 
Esses dias estava lembrando que a gente aprendia a ler, escrever e INTERPRETAR com os livros (raros e que passavam de uma geração para outra), e que a palavra escrita exercia um fascínio muito grande sobre mim – evidente que um ou outro professor despertava em nós o encantamento por determinado tema, e eu corria, literalmente corria, pra contar as novidades em casa...
 
A pouca Gramática que aprendi, devo a matérias de jornal, a textos muito bons e à leitura da Bíblia (cujos livros eu devorei como uma Saga, transportando-me para o texto e fazendo construções mentais); desde pequeno o Fantástico Mundo é mais realidade para mim do que o físico...
 
Nos jornais, li sobre Ditadura, Crise do Petróleo, Guerra Fria, conflitos no Oriente Médio e grupos paramilitares (ETA, IRA, Sendero Luminoso...), muito antes de saber o que era capitalismo ou comunismo... e mesmo antes de deixar de fazer xixi na rede... Fui alfabetizado antes dos 4 anos de idade, desenhando as letras das páginas dos jornais, que vinham com a feira embrulhando sabão – e devo ter dado muito trabalho à minha mãe, perguntando: - que nome é esse?
 
Bem, memórias à parte, vamos ao desafio.
 
Como creio que o papel de professor não é dar todas as respostas, mas ensinar a perguntar (porque quem aprende só a responder, fica perdido quando mudam as perguntas), apresento o texto de Fernando Sabino, para um bom exercício neste início de ano.
 
Abraços e feliz 2015!
 
Sds,
 
Joserrí de Oliveira Lucena
 
 
Eloquência Singular
Fernando Sabino

Mal iniciara seu discurso, o deputado embatucou:

— Senhor Presidente: eu não sou daqueles que...
O verbo ia para o singular ou para o plural? Tudo indicava o plural. No entanto, podia perfeitamente ser o singular:
— Não sou daqueles que...
Não sou daqueles que recusam... No plural soava melhor. Mas era preciso precaver-se contra essas armadilhas da linguagem — que recusa? — ele que tão facilmente caia nelas, e era logo massacrado com um aparte. Não sou daqueles que... Resolveu ganhar tempo:
— ...embora perfeitamente cônscio das minhas altas responsabilidades como representante do povo nesta Casa, não sou...
Daqueles que recusa, evidentemente. Como é que podia ter pensado em plural? Era um desses casos que os gramáticos registram nas suas questiúnculas de português: ia para o singular, não tinha dúvida. Idiotismo de linguagem, devia ser.
— ...daqueles que, em momentos de extrema gravidade, como este que o Brasil atravessa...
Safara-se porque nem se lembrava do verbo que pretendia usar:
— Não sou daqueles que...
Daqueles que o quê? Qualquer coisa, contanto que atravessasse de uma vez essa traiçoeira pinguela gramatical em que sua oratória lamentavelmente se havia metido de saída. Mas a concordância? Qualquer verbo servia, desde que conjugado corretamente, no singular. Ou no plural:
— Não sou daqueles que, dizia eu — e é bom que se repita sempre, senhor Presidente, para que possamos ser dignos da confiança em nós depositada...
Intercalava orações e mais orações, voltando sempre ao ponto de partida, incapaz de se definir por esta ou aquela concordância. Ambas com aparência castiça. Ambas legítimas. Ambas gramaticalmente lídimas, segundo o vernáculo:
— Neste momento tão grave para os destinos da nossa nacionalidade.
Ambas legítimas? Não, não podia ser. Sabia bem que a expressão "daqueles que" era coisa já estudada e decidida por tudo quanto é gramaticóide por aí, qualquer um sabia que levava sempre o verbo ao plural:
— ...não sou daqueles que, conforme afirmava...
Ou ao singular? Há exceções, e aquela bem podia ser uma delas. Daqueles que. Não sou UM daqueles que. Um que recusa, daqueles que recusam. Ah! o verbo era recusar:
— Senhor Presidente. Meus nobres colegas.
A concordância que fosse para o diabo. Intercalou mais uma oração e foi em frente com bravura, disposto a tudo, afirmando não ser daqueles que...
— Como?
Acolheu a interrupção com um suspiro de alívio:
— Não ouvi bem o aparte do nobre deputado.
Silêncio. Ninguém dera aparte nenhum.
— Vossa Excelência, por obséquio, queira falar mais alto, que não ouvi bem — e apontava, agoniado, um dos deputados mais próximos.
— Eu? Mas eu não disse nada...
— Terei o maior prazer em responder ao aparte do nobre colega. Qualquer aparte.
O silêncio continuava. Interessados, os demais deputados se agrupavam em torno do orador, aguardando o desfecho daquela agonia, que agora já era, como no verso de Bilac, a agonia do herói e a agonia da tarde.
— Que é que você acha? — cochichou um.
— Acho que vai para o singular.
— Pois eu não: para o plural, é lógico.
O orador seguia na sua luta:
— Como afirmava no começo de meu discurso, senhor Presidente...
Tirou o lenço do bolso e enxugou o suor da testa. Vontade de aproveitar-se do gesto e pedir ajuda ao próprio Presidente da mesa: por favor, apura aí pra mim, como é que é, me tira desta...
— Quero comunicar ao nobre orador que o seu tempo se acha esgotado.
— Apenas algumas palavras, senhor Presidente, para terminar o meu discurso: e antes de terminar, quero deixar bem claro que, a esta altura de minha existência, depois de mais de vinte anos de vida pública...
E entrava por novos desvios:
— Muito embora... sabendo perfeitamente... os imperativos de minha consciência cívica... senhor Presidente... e o declaro peremptoriamente... não sou daqueles que...
O Presidente voltou a adverti-lo que seu tempo se esgotara. Não havia mais por que fugir:
— Senhor Presidente, meus nobres colegas!
Resolveu arrematar de qualquer maneira. Encheu o peito de desfechou:
— Em suma: não sou daqueles. Tenho dito.
Houve um suspiro de alívio em todo o plenário, as palmas romperam. Muito bem! Muito bem! O orador foi vivamente cumprimentado.

Texto extraído do livro "
A companheira de viagem", Ed. do Autor - Rio de Janeiro, 1965, pág. 139.
 
 
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