ESTADO DE COISAS
INCONSTITUCIONAL
ADPF 347 - STF
Joserrí de Oliveira Lucena
“Nenhuma mãe merece tanto amor e tanto
carinho quanto a mãe de um encarcerado!”
A frase acima,
rabiscada numa parede de presídio, é um pequeno fragmento que demonstra a
percepção que o apenado tem da condição em que vive. A frase pode ser o
indicativo que uma mãe de encarcerado seria a pessoa mais indicada para
explicar o que se convencionou chamar de Estado de Coisas Inconstitucional.
Esse termo
não soaria tão estranho se não fosse cunhado pela mais alta Corte do país,
guardiã do ordenamento “Constitucional”. Logo, falar de Estado de Coisas Inconstitucional
na Corte Constitucional é surreal.
Mas, em
tempos em que o Poder Executivo (em todas as esferas) tem se mostrado inerte e
incompetente, além de imerso em brigas de gangues pelo comando (como um fim em
si mesmo), pouco se importando com os destinos de cidades, estados ou mesmo da
Nação, o ativismo judicial se mostra uma alternativa, e, no caso exposto aqui, foi
provocado por um partido político (Poder Legislativo) – ou seja, o judiciário
vai sendo convocado a um protagonismo que não seria necessário se cada Poder da
república cumprisse seu papel.
Foi esta a
primeira vez que o Supremo Tribunal Federal brasileiro declarou que vivemos
esse Estado de Coisas Inconstitucional, e isso ocorreu na manifestação em uma
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental patrocinada pelo PSOL
(Partido Socialismo e Liberdade), com pedido de medida cautelar, na qual
discute o 'estado de coisas inconstitucional' e formula 8 (oito pedidos) para
corrigir práticas de flagrante violação de direitos fundamentais no âmbito do
sistema penitenciário brasileiro, dentre as quais pede que o Tribunal:
a) determine
que os todos juízes e tribunais, "em caso de decretação ou manutenção de
prisão provisória, motivem as razões que impossibilitam a aplicação das medidas
cautelares alternativas à privação de liberdade" (artigo 319 do CPP);
b) reconheça
a aplicabilidade imediata do Pacto de Direitos Civis e Políticos e da Convenção
Interamericana de Direitos Humanos, determinando "que todos os juízes e
tribunais passem a realizar audiências de custódia, no prazo máximo de 90
dias";
c) determine
aos juízes e tribunais que passem a considerar, "fundamentadamente, o
dramático quadro penitenciário brasileiro no momento de concessão de cautelares
penais, na aplicação da pena e durante o processo de execução penal".
O que também
está em discussão pelos ministros, é saber se estão presentes os pressupostos e
requisitos necessários à concessão da cautelar.
Essa ADPF
recebeu o número 347, e em decisão de 27/08/2015, o STF reconheceu a
inconstitucionalidade do caótico sistema penitenciário brasileiro. O julgamento
foi suspenso após voto de Marco Aurélio, que assim determinou;
1) que os
juízes fundamentem a não aplicação das medidas cautelares alternativas do art.
319 do CPP;
2) que sejam
realizadas audiência de custódia, em no máximo 24h após a prisão (PIDCP, art.
9.3 e CADH, art. 7.5) – fazendo aplicação do direito internacional;
3) que os
juízes considerem o quadro dramático do sistema penitenciário quando
determinarem alguma prisão;
4) que se
apliquem as penas alternativas (CP, art. 44);
5) que a
União libere o saldo acumulado do Funpen (Fundo Penitenciário Nacional)
abstendo-se de novos contingenciamentos.
De ofício,
também foi deferida medida de natureza cautelar sugerida pelo Ministro Roberto
Barroso para a realização de diagnóstico da situação denunciada, de modo a
permitir um uma melhor instrução do processo para o julgamento de mérito – em
data incerta e não sabida, como outras decisões importantes, são postergadas
pelos ministros da Corte.
Deveria ser
óbvio que os presos merecem tratamento respeitoso. Afinal, é Constitucional.
A
Constituição Federal proclama no artigo 5º, inciso XLVII: “não haverá penas: a)
de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; b) de
caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis”. E no inciso
XLVIII: “é assegurado aos presos o
respeito à integridade física e moral”.
Ademais, o Código Penal diz, no art. 38: “O
preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade,
impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral”.
E a LEP (Lei de Execução Penal) dispõe no artigo 40: “Impõe-se a todas as autoridades o respeito à
integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios”.
Ora,
reconhecer o Estado de Coisas Inconstitucional é constatação de um cenário
fático com quadro de agressões em larga escala aos direitos fundamentais no
sistema prisional brasileiro, cuja correção de rumos deveria surgir do próprio
Judiciário; mas a inépcia torna cada vez mais distante uma possível solução,
que precisa embora seja estrutural, começa por corrigir condutas,
comportamentos e até mesmo novas alternativas do enfrentamento aos problemas
existentes, e que propiciassem criar um ambiente para resultados satisfatórios.
Difícil
acreditar que o Supremo Tribunal Federal, negligente como tem sido de suas
responsabilidades, ao cuidar do mérito da ADPF 347, não adote mais uma solução
importada, e que saiba atuar como guardião dos direitos constitucionais,
zelando por perseguir a dignidade da pessoa humana e a garantia de preceitos
fundamentais.
É difícil,
mas ainda assim não nos custa debater e militar no sentido de dar visibilidade
à hipocrisia do Estado em deslegitimar o ordenamento jurídico e violar direitos
fundamentais.
Imaginando
que possam importar as medidas de outros países, citamos a título de comparação
o que fez a Corte Constitucional da Colômbia: foram os colombianos que
conceberam, pioneiramente, o termo ECI para Estado de Coisas Inconstitucional,
e aprovaram medidas inéditas para combatê-lo. A primeira decisão foi proferida
em 1997, e reconhecia omissão generalizada das autoridades públicas em relação
à implementação de providências capazes de satisfazer determinado direito dos
professores. Em 1998, noutra sentença, a Corte colombiana, tratando da complexa
situação dos presídios do país, decidiu por declarar o Estado de Coisas
Inconstitucional do sistema carcerário, atestando condições de vida infames, de
situação atentatória à dignidade da pessoa humana, em estabelecimentos marcados
pela superlotação.
E em 2004, a
Corte da Colômbia julgando caso de pessoas vítimas de migração forçada em razão
da violência dos conflitos armados que marcam o país (“deslocadas”), reconheceu
o ECI diante da omissão estatal no atendimento a essas pessoas, tendo
determinado uma série de providências para a superação das falhas estruturais
no auxílio dessas pessoas em situação de vulnerabilidade.
Se resolver
copiar um modelo inspirado nas structural injunctions (Estados Unidos), o STF
pode adotar a aplicação de decisões estruturantes, singulares, incrementais,
diferente do “feijão com arroz” do uso de violência, de medidas disciplinares
excepcionais, mas com a realização de um amplo debate nacional que estude as
causas, para agir nelas, e não apenas a busca de paliativos, que tentam
(infrutiferamente) intervir no resultado. Doutra forma, será reforçar uma
cultura de mais violações dos direitos garantidos pela lei fundamental.
Creio,
entretanto, que é imprescindível mobilizar os diversos atores sociais (igreja,
escola, ongs, oscips, clubes de serviço, mídia, partidos políticos, poderes da
república, entidades de classe, a população em geral) para a discussão temática
do problema, e não apenas esperar uma solução mágica do “todo poderoso” STF –
cada vez mais adepto do ativismo judiciário, alimentado pelo culto à
personalidade e às “soluções” paliativas (e por isso mesmo, ineficazes).
Os direitos e
garantias Constitucionais precisam ser respeitados – posto que já positivados –
e a adoção de novos ordenamentos internacionais, que visem construir
minimamente a ideia de dignidade da pessoa humana, não apenas aos cidadãos
livres, mas, e sobretudo também aos apenados.
Devemos
aproveitar essa “deixa” para ampliar o debate das condições nada humanas a que
é submetida a população carcerária, da qual muito se divulgam as rebeliões,
fugas e outras condutas, mas que nada se fala da falta de condições mínimas de
higiene, saúde, e tratamento digno.
Ingo Wolgang
Sarlet, conceitua dignidade da pessoa
humana como sendo uma…
“qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz
merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade,
implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que
assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e
desumano, como venham a lhe garantir as condições existentes mínimas para uma
vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e
co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os
demais seres humanos.
Não fazer
nada para cessar esse Estado de Coisas Inconstitucional, também é tortura, e
isso é mais gravoso que a pena.
Que não
apenas as mães dos encarcerados, mas que cada um de nós seja sensível à
situação dos apenados, e que nos empenhemos em buscar formas de propiciar
condições de cumprimento de penas com a garantia dos direitos e preceitos
fundamentais e em ambiente com condições onde a dignidade da pessoa humana seja
uma realidade e não o atual cenário caótico, que acaba sendo uma “fábrica de loucos”,
como declarou em entrevista à TV Record um dos mais famosos presos do Brasil,
Fernando Beira-Mar (e o traficante nem de longe cumpre sua pena nas mesmas
condições da maioria dos apenados).
Que o STF
tenha um lampejo de civilidade, e se manifeste na ADPF 347 de forma a
movimentar a Corte, o Judiciário e a Nação na direção de medidas que
interrompam o ciclo e cessem esse Estado de Coisas Inconstitucional.
Joserrí de Oliveira Lucena
acadêmico de Direito - UERN
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Artigo escrito ao estudar a cadeira Processo
Penal III, sob a ministração da Profª. Drª. Carla Maria Fernandes Brito Barros,
do curso de Direito, na UERN – Universidade Estadual do Rio Grande do Norte –
em junho/2016.