quinta-feira, 29 de dezembro de 2016
Gente do Bem. by Dilson Cunha
GENTE DO BEM
"Eu não sou uma pessoa má", disse um dos cruéis assassinos que espancaram até a morte um vendedor ambulante na estação do metrô em São Paulo.
Inauguramos há algum tempo a estúpida era da "gente do bem". Gente do bem é aquele tipo de gente que não foi predestinado à maldade. Maldade, no caso deles, é um caso de acidente de percurso, não de índole. Índole é um caso de outro tipo de gente, independentemente se esse "outro tipo de gente" tenha cometido um crime ou não. É aquela gente presumidamente má.
Com o desaparecido e assassinado pela PM do Rio, o Amarildo, foi assim. Li de um monte de "gente do bem" aqui no Fb desconfianças sobre quem era mesmo aquele aquele ajudante de pedreiro, porque não era possível que um grupo de pessoas do bem o tivesse matado à toa, afinal, com aquele perfil, negro, pobre, favelado e morto pela polícia, dificilmente ele se encaixaria no perfil de "gente do bem". Dele se diz que estava no local errado na hora errada com as pessoas erradas. "Paciência". Amarildo não deveria mesmo ser "gente do bem".
Portanto, é isso que faz um perverso dizer que, apesar de sua perversidade, não é uma pessoa má. Não se admire, ele não está sozinho. Essa é uma marca desses nossos últimos anos. Ficamos assim, essa dissonum personalitatem. Erroneamente, cremos ser maus não pela maldade que fazemos, mas por uma questão de natureza. Não sei se "bons antecedentes" é uma invenção brasileira, mas fomos nós quem a levamos às últimas consequências.
No convívio social, tem-se apenas uma maneira de avaliarmos o mal: pela maldade praticada. Não se está em questão, como no ideiário de consciência da cultura da judaico-cristã, a subjetividade do bem. É-se ou não mal pelo mal que se pratica. Ora, quando falou do bem que um "repugnante" samaritano fizera, Jesus foi simples e conclusivo para com os do seu "grupo": "façam como ele". Nós, "gente do bem", é que cuidamos de apelidar àquele pertencente à gente do mal de "bom samaritano", ou seja, uma exceção.
Estamos numa sociedade onde gente do mal, que defende a tortura como expediente moral, a ditadura como regime político, o fuzilamento como expediente assepsia ideológica, é tratada como "gente do bem". Onde prender alguém em um poste e fazer justiçamento com as próprias mãos linchando-o, é justiça. Onde perseguir, execrar e surrar moral e civilmente os homossexuais é ser um cristão piedoso.
"Eu não sou uma pessoa má." Eichmann, tocando quartetos de Brahms para os amigos, provavelmente diria a mesma coisa de si mesmo.
Nunca fomos tão maus quando quanto nos tornamos tão "gente do bem".
Dilson Cunha
29.12.16
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