Há textos que de tão geniais merecem ser replicados.
Como eu, se permita ser abençoado e cresça espiritualmente.
Joserrí de Oliveira Lucena
O inferno
Ricardo Gondim
Ricardo Gondim
O invejoso não consegue esconder o tamanho de sua contrição. Por mais que agrida, sempre sofre. O valor que brilha nos outros dói nele. Não se conforma em ver-se preterido pela Providência. Seu talento, genialidade e riqueza não podem ser subavaliados. Muitas vezes piedoso no que constata, embarga a voz. Mas seu choro nunca expressa admiração. É jeito de remoer-se. Ardiloso, consegue até criar um eufemismo: inveja é apreciação – mal resolvida talvez, mas apreciação. Ressentido, chega a largar as pedras; prefere encher as mãos de lama. Melhor sujar do que matar.
O invejoso adora rotular. As etiquetas que pendura no peito dos desafetos não pretendem diminuir. São meras tentativas de afastar incautos da grandeza de quem abomina. “Como pode ser tão admirável”, pergunta-se. Alexandre Pronzato não deixa por menos: “O homem torna-se uma abstração quando lhe colo na pele uma etiqueta, quando o classifico. E quantas etiquetas existem por aí, já prontinhas! Materialista, ateu, liberal, comunista, progressista, revolucionário, libertino, reacionário. E a etiqueta impede de vê-lo e avizinhá-lo em sua realidade mais autêntica: um homem, um irmão”.
O invejoso não consegue amar; sequer amar a si mesmo. Detesta-se por não ter ou ser o que tanto aprecia. François Varillon diagnostica: “Se amasse ou se amasse bem – porque há um amor por si mesmo que não é egoísmo – não ficaria descontente com a força, a riqueza ou talento que florescem a seu redor e tornam o mundo mais belo”.
José Ingenieros sintetiza toda a psicologia da inveja numa simples fábula: “Um ventrudo sapo grasnava em seu pântano quando viu resplandecer no mais alto de uma pedra um vagalume. Pensou que nenhum ser teria direito de luzir qualidades que ele mesmo não possuiria jamais. Mortificado pela própria impotência, saltou em direção a ele e o encobriu com seu ventre gelado. O inocente vagalume ousou perguntar ao seu algoz: ‘Por que me tapas? E o sapo, congestionado pela inveja, apenas conseguiu interrogá-lo: ‘Por que brilhas?’”.
Os Dez Mandamentos, contados (ou percebidos) de cima para baixo, podem mostrar a degradação que a inveja impõe aos cobiçosos. O mandamento dez ordena: não cobice. A partir daí começa a derrocada do invejoso: no nono mandamento, levanta falso testemunho; no oitavo, rouba; no sétimo, traí; e no sexto, mata. Cobiçoso e homicida, separados no processo de agir, são iguais.
René Girard denomina essa mistura de desejo mimético. Girard usa a palavra mímesis porque entende que a violência se esconde no desejo. Somos constituídos a partir da imitação. E essa imitação não evolui, entre homens e mulheres, impune. Desejamos, desde o dia em que nascemos. Desejo que tanto leva à imitação quanto gera a vontade de suplantar o outro. Desejo e rejeição se imbricam na constituição humana. Admiramos e odiamos, simultaneamente, quem se mostra capaz de possuir o que se tornou o alvo de nossa cobiça. Se, a princípio, imitamos, logo rejeitamos. Desejo mimético é disputar não apenas a posição que o outro ocupa ou o que ele é, mas, desejar os mesmos desejos que ele. Portanto, desejo mimético pode ser sintetizado numa pequena frase: desejar o que o outro deseja.
James Alison explica a teoria mimética de René Girard valendo-se de uma boa ilustração. “Quero uma jaqueta de aviador de caça porque vi o Tom Cruise vestindo uma no filme Ases Indomáveis (Top Gun). Até aqui tudo bem. Tom Cruise está muito longe. Eu nunca o conheci pessoalmente e nunca vou brigar com ele por causa de sua jaqueta. Além do mais, empresários inteligentes já se adiantaram à ocasião saturando o mercado com jaquetas de aviadores de guerra, de maneira que não vou precisar disputá-las com o mediador do meu desejo. Próximo de casa, todavia, depois de termos assistido ao filme Ases Indomáveis, um amigo e eu saímos às compras em busca de uma jaqueta de couro; e ele quer que eu o acompanhe para ajudá-lo a escolher uma bela jaqueta de aviador. De repente, ele vê uma jaqueta tipo Ases Indomáveis com um design bacana que adora, mas não tem dinheiro para comprar. Misteriosamente, nenhuma das outras 378 jaquetas da loja me chamam a atenção. Tenho que possuir aquela. Mais tarde, volto sorrateiramente à loja com meu cartão de crédito e a compro. Quando, mais tarde, encontro meu amigo num bar, ele não está nem um pouco contente. Discutimos violentamente: ‘Você roubou minha jaqueta’, ele diz. ‘Eu vi primeiro’. ‘Isso não é verdade’, digo. ‘Eu sempre a quis’, respondo, escondendo de mim mesmo e de meu amigo o fato de que, na realidade, por gostar dele e por querer ser como ele, eu tinha que tê-la. De qualquer maneira, por que o imbecil do meu amigo fez tanta questão que eu o admirasse naquela jaqueta, por que fez tanta questão que eu também a cobiçasse?”.
Eis a trilha por onde a inveja se intromete. Sorrateira, se instala na alma e gera violência. Valendo-se de pensamentos bem lógicos e racionais, o invejoso esconde no porão do inconsciente o que o desnuda: ele não passa de um fraco. Por isso, despreza. Encerrado na própria solidão e desesperado em mostrar-se essencial ao mundo, ausenta-se de tudo e de todos – Eis o Inferno, senhoras e senhores. À beira do barranco, onde inferno e solidão se confundem, o invejoso vomita sua maledicência no mundo. Inebriado, procura no próprio charco o espelho de sua formosura. Nada sente senão ressentimento e ódio. “Ele é a angústia do mundo que o reflete. Ele é o que se recusa às verdadeiras fontes da emoção, as que são o patrimônio de todos, e, encerrado em seu duro privilégio, semeia pedras…” [Vinicius de Moraes]
Soli Deo Gloria
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