Já havíamos passado pelo trauma da perda de um filho por um parto desastrado em Caicó, que acabou vitimando nosso bebê de forma prematura, menos de 48 horas depois de nascido. Aquilo não foi um parto: foi um massacre! Ficamos marcados na alma e sofremos com isso por 15 anos... até a chegada de Samuel.
Concordáramos jamais se submeter a outro processo daqueles, mas o maior reforço veio da própria médica (cujo nome preservamos por questões éticas) que nos disse que em mais de 30 anos de carreira, nunca havia se convencido que parto natural é normal.
Normal? Como pode ser normal deixar uma mulher sofrendo horas num processo cuja evolução tratou de evitar?
Se baseados no mesmo princípio, extrações dentárias deveriam ser feitas sem anestésicos...
Parto Natural não é parto normal. A única e verdadeira razão de governos e planos de saúde o defenderem como método, é que o prazo de internação é reduzido e o custo é muito baixíssimo. Embora tratar de sequelados custe muito mais caro, mas até agora ninguém havia falado no assunto.
Ademais, se morre filho, mãe ou ambos, é filho de pobre, geralmente - porque rico tem parto humanizado e pode optar pela cesárea ao menor sinal de risco.
O texto do pediatra potiguar Arthur Jorge de Vasconcelos Ribeiro esclarece o que de fato vem ocorrendo em hospitais do estado, num verdadeiro genocídio neonatal, e na produção de grande quantidade de sequelados em vários problemas decorrentes do parto "normal".
Leia, reflita e reaja!
Joserrí de Oliveira Lucena.
Nossas crianças
Quanto devemos ser aguerridos para impedir que bebês morram ou fiquem com sequelas neurológicas logo ao nascer? Sinto informar-lhes, mas isso é rotina no Rio Grande do Norte.
O primeiro ato dessa tragédia ocorre no atendimento Pré-Natal de nossas gestantes, quando, pela falta de exames ultrassonográficos e outras avaliações em número suficiente, não são dados os diagnósticos de várias malformações nos fetos, ou reconhecidos os bebês grandes demais para nascerem por via vaginal.
No ato seguinte, as futuras mães não podem receber a orientação de onde devem apresentar-se para parir (não há essa logística no SUS); nem a estrutura do SUS permite a indicação precoce de cirurgia cesareana, pois a norma é sempre se tentar o parto vaginal (nem se, por exemplo, o peso fetal estimado pelo ultra-som seja maior que 4 Kg).
No terceiro, faltam-lhes transporte adequado até a maternidade.
Na sequência, as Unidades Básicas de Saúde e as maternidades menores, via de regra, não têm cardiotocógrafos, que são aparelhos para monitorar o sofrimento fetal.
Nesse contexto, até alguns anos atrás o problema das maternidades com menos recursos era a decisão sobre quais eram as gestantes de maior risco.
Nos últimos anos, contudo, algumas unidades de atendimento ao parto estão simplesmente sendo fechadas. No desespero, sem conseguir atendimento em outro local e avizinhando-se o momento do parto, as grávidas vão de carona ou de táxi para a Maternidade-Escola Januário Cicco ou para o Hospital José Pedro Bezerra.
São recebidas lá em trabalho de parto avançado ou mesmo após o parto dentro do carro que as transportou. Sem que tenham sido apontados pelo Pré-Natal os fetos de maior risco, algumas vezes em ambulâncias inadequadas vindas de cidades distantes.
Com muita sorte, a grávida dá à luz uma criança saudável e consegue uma vaga em uma enfermaria lotada, num leito sem distanciamento do leito vizinho. Com um pouco menos de sorte, ficam numa maca no corredor ou no infame “leito-chão”.
Se você não é potiguar, explico-lhe: “leito-chão” é o eufemismo para não se dizer que as mulheres pobres e seus recém-nascidos de um ou dois dias ficam jogadas, sim, o nome é esse, jogadas, no solo. Diz a Bíblia que Jesus nasceu pobre, mas aqui decerto seria considerado afortunado, pois pelo menos uma manjedoura tinha para se apoiar.
O desastre maior ocorre com os que poderíamos chamar de azarados. Mas “azarado”, certamente, não é um termo adequado para quem foi atingido por um padrão, repetitivo há gerações, de falta de estrutura e organização na saúde pública. As maiores vítimas (sim, “vítima” é o melhor termo) são os que passam por falta de oxigênio ao nascimento.
Até um determinado nível de anóxia, a sequela pode ser superada pela adaptação do cérebro e com o uso de eventuais estimulações (fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional, psicopedagogia) que a criança vier a receber.
Num nível mais grave, as sequelas são abundantes: fraqueza de movimentação voluntária associada a membros enrijecidos (paralisia cerebral), dificuldade de aprendizado, dificuldade de fala, déficits visuais e de compreensão auditiva (pelos problemas nas áreas cerebrais responsáveis pela visão e pela audição), associação com epilepsia. No maior nível de gravidade, a criança morre. Algumas vezes também a mãe.
Meu nome é Arthur, sou médico neurologista infantil do Centro de Reabilitação Infantil do Rio Grande do Norte, o CRI. Nas últimas semanas venho, de modo informal, contabilizando as causas dos problemas das crianças que atendo lá.
Comecei a fazer isso porque desconfiava que a proporção de crianças com sequela de anóxia neonatal e outras doenças evitáveis era grande. No dia em que atendi menos pacientes com anóxia, eles foram um terço do total. No que atendi mais, foram dois terços.
Calculando por alto os sequelados de anóxia são, portanto, metade da clientela do CRI. Uma criança com paralisia cerebral gera gastos para o governo com pediatra geral, neurologista, ortopedista, fisioterapeuta, fonoaudiólogo, psicólogo, psicopedagogo, psicomotricista, nutricionista, odontologista, educador físico, assistente social, eletroencefalogramas, radiografias, tomografias computadorizadas (ou ressonâncias magnéticas), exames hematológicos e bioquímicos, antiepilépticos, relaxantes musculares, antipsicóticos, aplicação de toxina botulínica na musculatura espástica, cirurgias de colocação de válvula de gastrostomia, cirurgia de tenotomia, cirurgia de luxação de quadril, transporte do paciente e família e vários outros gastos relativos ao tratamento e reabilitação.
Se a família for de baixa renda tem direito ao LOAS, um benefício em dinheiro entregue pelo governo através do INSS, no valor de um salário mínimo mensal. Não se pode alegar que o atendimento à gestação e ao parto é de má qualidade porque custa caro. Muitíssimo, incomparavelmente mais caro é atender os sequelados.
Se uma pessoa é atingida por um raio, podemos chamar de acidente, mas esse contexto que lhe descrevi, não.
As crianças estão sendo mortas ou tornadas inválidas por uma mistura de incompetência, ignorância, ganância, covardia e fuga da responsabilidade. Saindo do confortável papel de reclamar, aponto os culpados e sugiro a soluções para resolvermos essa nossa sina.
Começo acusando aqueles que, tendo acesso a planos de saúde e atendimentos particulares, ao leem esse texto, ficam aliviados por eu ter me referido somente ao SUS até agora.
O seu alívio é irmão do desprezo dos donos de escravos para com os filhos dos cativos, irmão do desprezo dos nazistas para com as crianças judias, irmão do desprezo das castas superiores aos filhos dos intocáveis na Índia. Peço a você que se indigne.
O fato de estarmos assistindo há décadas não nos dá o direito de considerar natural a morte ou invalidação dos nossos descendentes. Peço que se refira às crianças que nascem em maternidades públicas como eu me refiro aqui: nossas crianças.
Sinta o peso de verbalizar a possibilidade de sua prole estar com paralisia cerebral. Tenhamos solidariedade com nossos conterrâneos qualquer que seja a classe social.
Na doença, os seres humanos abandonam a estratificação social. Numa clínica de hemodiálise, por exemplo, o milionário com a circulação sanguínea em filtração por um dos aparelhos conversa de igual para igual com o favelado na máquina vizinha.
Gostaria que você visitasse o CRI. Fica ali na Avenida Alexandrino de Alencar, vizinho ao Bosque dos Namorados e em frente ao IBAMA. Olhe nos olhos das mães e das crianças que passam por lá. Converse com elas. Sente-se num daqueles bancos de frente ao corredor das salas de ambulatório. Imagine-se substituindo o alívio de ter uma opção ao SUS pela angústia dos usuários do CRI. Irmane-se com eles. Enquanto nos sentirmos um povo diferente do povo que usa o SUS, o povo potiguar (ou seja, todos nós) não veremos o fim dos gritantes problemas na saúde pública.
Em segundo lugar aponto o dedo para a imprensa.
Não apenas pelas maiores empresas de comunicação serem propriedade de membros da classe política, mas porque mesmo a imprensa independente se vale quase que somente da imagem chocante, marcante, para noticiar. Assim, um corredor lotado de uma maternidade dá um ótimo vídeo para a televisão ou uma ótima foto para o jornal, mas uma Unidade Básica de Saúde sem funcionar, não.
O repórter não se interessa pela imagem de um Centro de Saúde vazio e sem pessoas para entrevistar. Por conseguinte, a causa da maternidade de referência lotada, que é a falta de estrutura e organização no Centro de Saúde e nas maternidades de nível primário, raramente é alvo de cobrança pelos jornalistas.
Em terceiro lugar cito as pessoas que vendem o voto. O componente de ignorância e de alheamento ao fator cultural que nos leva a dar importância a uma eleição deve ser considerado, mas todos sabem que isso é crime. Quando ocorre a compra de votos, o compromisso do político com o bem estar da população que o elegeu é zero.
Por último a causa maior desse verdadeiro infanticídio são os ocupantes de cargos de governo. Eu acuso todos os ex-governadores do Estado do Rio Grande do Norte e a atual Governadora e os ex-prefeitos e atuais prefeitos de Natal e do interior do estado de traição ao povo. Suas mãos estão sujas de sangue de crianças.
As mãos de muitos senadores, deputados federais, deputados estaduais e vereadores do RN igualmente também estão. Que ninguém me fale da conjuntura política adversa. Não aceito que os bebês paguem com a vida e com a saúde por causa dessa conjuntura. Na campanha, os candidatos não apresentam metas objetivas nem dão justificativas para aquilo que já desconfiam que não conseguirão no cargo eletivo, apenas fazem promessas inalcançáveis.
Certa vez, pesquisei o preço de um eletroencefalógrafo (aparelho de realizar eletroencefalogramas), pois um filantropo gostaria de doá-lo ao ao Hospital de Pediatria da UFRN. Liguei para a primeira empresa e pedi um orçamento, que me seria mandado por e-mail posteriormente. A diretora da empresa com quem eu conversava já disse o preço que seria, porém, pediu que eu informasse onde seria instalado o aparelho, pois precisariam registrar na ANVISA. Quando eu contei, ela falou: “ah, mas para instituição pública o preço não é esse, não, é o dobro”. Fiquei chocado. Argumentei que a compra não estava sendo feita pela direção, e sim por particulares que doariam o aparelho ao hospital, pagando à vista, mas não teve jeito. Nos dias subsequentes conversei, então, com várias pessoas do meu círculo de amizades e elas confirmaram que esse tipo de prática é comum e deve-se às exigências de propinas por parte dos políticos para liberar o pagamento dos produtos comprados por licitação. Depois disso, peguei o hábito de ler atentamente as placas das obras públicas informando o valor gasto. Todas as obras públicas são superfaturadas. Se você duvida, observe as placas e peça a alguém que trabalhe no ramo da engenharia civil para estimar quanto custa de fato cada obra. Um exemplo: vi a placa falando o valor gasto na construção de um posto policial: R$ 58.000,00. Perguntei a um amigo engenheiro por quanto ele faria uma construção igual na época: R$ 14.000,00.
Há uma pressão por parte do Ministério Público para que haja transparência nas contas das prefeituras e do governo, e que seja usado o pregão eletrônico, tido como mais confiável que as licitações, mas os governantes resistem. O que eles fazem, na realidade, segue na direção oposta.
No último mandato de Vilma de Faria como governadora, o filho dela foi acusado pela Polícia Federal, na Operação Hygia, de envolvimento com desvio de dinheiro público da saúde. O Ministério Público descobriu, na gestão de Micarla de Souza na Prefeitura de Natal, um esquema de superfaturamento e desvio de recursos da ordem de milhões, nas contas da UPA do bairro de Pajuçara. Quando um criminoso mata uma pessoa na rua é chamado de bandido. Como devem então ser qualificados os que causam os problemas nos postos de saúde, maternidades e hospitais, que levam à morte ou invalidação de centenas de crianças?
Mas não é apenas através do roubo puro e simples via corrupção que os mandatários públicos prejudicam a saúde pública. A prática do preenchimento de cargos comissionados através de indicação política ou por familiares também é nociva. Imagine-se na situação de ser o dono de uma loja de roupas. Se você empregar alguém devido a este funcionário ter capacitação e disposição para o trabalho, poderemos nos queixar e mesmo demiti-lo caso ele deixe de trabalhar corretamente. Se empregarmos um parente ou um amigo, no entanto, não poderemos criticar o que ele faz nem, muito menos, puni-lo se não produzir no trabalho. Essa é a situação dos funcionários comissionados escolhidos por motivos outros que não a competência. Os cargos de alto escalão da saúde com maior possibilidade de gerar pedidos de propina são escolhidos por indicação “política”. Forma-se então uma cascata de corrupção, incompetência, insatisfação, funcionários fantasmas, baixos salários (com desvio de dinheiro, muitos cargos comissionados para serem pagos e má gestão dos concursados, sobra pouco dinheiro para pagar quem realmente trabalha), má qualidade do serviço público.
Empossar-se técnicos com capacidade em administração de saúde pública nos cargos comissionados e que recebessem metas de trabalho, apoio político do governante para cumprir o dever e fiscalização e premiação pelo alcance da meta faria, sim uma diferença enorme. Pressionemos para tal.
Outra medida bastante necessária seria a criação de um mecanismo para dar independência à Comissão de Vigilância Sanitária (COVISA). No modelo atual, o executivo fiscaliza, além dos hospitais privados, suas próprias instituições! Já pensou se fosse, permitido, por exemplo, cada cidadão fiscalizar seu próprio pagamento de Imposto de Renda?! Pois é, É por conta da estrutura de comando da COVISA que exige-se dos hospitais privados a higiene e organização máximos, e a exigência para os hospitais públicos é zero, a não ser quando há alguma pressão por parte da imprensa, do Conselho Regional de Medicina ou do Ministério Público.
Desculpem-me se me alonguei demais nessa denúncia e no desabafo. Eu não queria deixar de detalhar o que eu julgo serem as causas desses problemas que atingem crianças no nosso estado. Precisamos saber como ocorre para saber como agir, lutar contra os pilantras que dilaceram as finanças da saúde pública. Esses abutres, que se beneficiam da situação atual, lutam contra as mudanças que salvariam as crianças, mas os fariam perder seus cargos, vantagens em licitações, propinas.
Em nome da vida e da saúde de nossas crianças, e sabendo do que realmente precisa ser feito pela saúde pública, lutemos.
Arthur Jorge de Vasconcelos Ribeiro
Fonte: http://glaucialima.com/neuropediatra-de-natal-diz-que-existe-um-infanticidio-no-rn/#sthash.k55NvUUz.dpuf
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