domingo, 30 de março de 2014

Ave Anuradha! Bendita és tu entre as estupradas...

Os textos de Dilson Cunha são tão bons, que nesses dias crio, nesse blog, um mecanismo prá reproduzir automaticamente todos...

... super atualizado e contundente o texto abaixo. Daqueles que vale a pena ler e replicar...

Joserrí




Ave Anuradha! Bendita és tu entre as estupradas...
Por Dilson Cunha

A pesquisa divulgada na quinta-feira passada pelo Ipea, dando conta da tolerância social à violência contra a mulher, onde 58,5% dos entrevistados concordam que o estupro decorre do mau comportamento da mulher e 65,1% concordam que mulheres que usam roupas provocantes merecem ser estupradas, é reveladora. Trágica e vergonhosamente reveladora.
Estupro seria, assim, uma legítima defesa masculina às provocações dos seus instintos sexuais primevos e incontroláveis.
O que espanta e agrava a coisa é saber que dos 3.810, 65,2% entrevistados são mulheres.
A violência e o autoritarismo de nossa sociedade patriarcal de matriz cristão-escravocrata estão tão entranhados na nossa mentalidade social que nem nos damos conta. Nessa cultura, ainda que não confessemos, vadia é a mulher. A política, a cultura, a religião e a média moral social ponderada não me deixa mentir.
É muito peso para a mulher ter que arcar com o peso de domesticar a bestialidade masculina. Já chega tantos outros que ela carrega pelo simples fato de ser a maldita entre os gêneros.
Historicamente, nossa relação com as mulheres sempre foi horrorosa. Sempre foi opressora e ambígua. Sempre foi uma relação covarde de poder. Faz parte do establishment masculino a negação da mulher, inclusive de sua sexualidade. Já é mais que sabido que em quaisquer convulsões sociais, a mulher sofre mais que o homem.
O poder masculino é tanto que se criou no mês de março o "dia da mulher". Há qualquer coisa nisso, menos sutileza.
Homem que é homem demonstra ser homem pela expressão de sua sexualidade. Mulher, não. Sexualidade só "suja" a figura feminina, desde Eva, pelo menos no imaginário popular.
Na divisão dos papéis, homem é o predador insaciável e justificadamente cínico. Mulher é naturalmente materna e grave. Só as putas tem licença para pecar, mas, ainda assim, é bom apedrejá-las vez ou outra para deixar claro quem é que manda.
Chocou aos fariseus e hipócritas religiosos a equivalência que Jesus fez deles à prostituta que, em nome dos "bons costumes", queriam apedrejar. Os prostitutos ficaram "putos"!
Por falar em putos, a expressão "filho da puta" é mais um indicador do abuso fálico de poder. Ofende-se alguém chamá-lo disso porque é mais feio ser filho de uma vadia, a quem não se dá o direito de anonimato, por isso é mãe, do que de um pai bastardo que não se assume enquanto pai. Ou você já viu se ofender alguém com um "filho do puto"?

Anuradha
Do outro lado do mundo, no Nepal, vive Anuradha, uma mulher de aparência frágil mas de extremadas força e coragem. Anuradha é a fundadora da Maiti Nepal, uma organização que resgata e acolhe mulheres, geralmente meninas, que são raptadas e submetidas à escravidão sexual.
Lá, como aqui, as meninas - mesmo que "muito bem vestidas" - são as responsáveis pela violência que sofrem. Menos para Anuradha. Boa parte das meninas violentadas são rejeitadas pela família depois de resgatadas, tornando-se párias.
O belíssimo, corajoso e terno trabalho de Anuradha é prevenir, resgatar e denunciar ao mundo o drama das meninas nepalesas. Defender a mulher, nesse universo "naturalmente" masculino, é tarefa de mulher. Anuradha é uma santa. Daquelas que só nos daremos conta quando virar tema de filme Hollywoodiano. Uma pena! Ela é daquelas mulheres franzinas que derruba muito macho covarde e frouxo.
Em tempos de pesquisa do Ipea, de encoxadores em metrôs, de Pussy Riots e do Femen, do reforço dos discursos machistas, Anuradha é uma bendita entre as mulheres, especialmente as estupradas.
Quinta-feira, dia 27 de março de 2014, menos de três semanas depois dos nossos afagos às fêmeas com o infame Dia Internacional da Mulher, deu uma vergonha danada ser macho. Ah, sim, eu sei o espanto e as críticas que tal afirmação suscita numa sociedade em que nunca se deve ter vergonha de ser macho. Há, naturalmente, vergonhas em se ser fêmea, nunca em se ser macho. Mas eu acredito piamente que para sermos homens carecemos que tenhamos vergonha das inúmeras expressões que nos designam "machos".
Dia 27 de março - pelo menos nesse país chamado Brasil, que vem de braseiro, onde homens abrasados estupram ou justificam o estupro como uma modalidade de auto preservação - deveria ser instituído o Dia da Vergonha do Homem.
Tínhamos - nós, os homens - que sermos machos pelo menos para isso. Pois, de resto, temos sido só pênis e pose.

Dilson Cunha
30/03/14

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